terça-feira, 7 de abril de 2020

Um tal de Covid 19.


Tenho TOC, ou seja, Transtorno Obsessivo Compulsivo. Sim, tenho aquelas manias que todos acham graça e consideram coisas de maluco. Assim como eu também acho.

Entre algumas dessas manias, por exemplo, não entro em lugar nenhum que não seja com o pé direito. Isso vale para qualquer lugar que tenha alguma “divisão”. Do quarto pro corredor, do corredor pro banheiro, do banheiro de volta pro corredor. Nas ruas então, nem se fala. Ao atravessá-las, saio da calçada com o pé direito, e só subo a calçada do outro lado com o pé direito também. Se uma calçada for vermelha e depois passa a ser verde, preciso pisar na cor nova com o pé direito. Qualquer lugar que eu vá, que eu entre, preciso usar o pé direito primeiro. 

Se possível, evito as faixas de pedestres. Vocês não têm noção do que significa uma faixa na vida de uma pessoa que tem TOC. Perturbador.

Subo uma escada rolante com o pé direito, e só saio dela com o pé direito.
E pra entrar num carro? Como não dirijo, e estou sempre na “carona”, obrigatoriamente tenho que entrar pelo lado esquerdo, certo? Vocês podem imaginar como é entrar no carro pelo lado esquerdo usando o pé direito? Abro a porta e entro “de bunda”. Depois de sentado, fico com a perna esquerda suspensa até pisar com o pé direito. É um malabarismo, mas faço isso com maestria.

Sentar em bancos de praça? Jamais. Sair de casa sem fazer o sinal da Cruz diversas vezes? Nunca. Se eu cismar com alguma coisa na rua (um carro, uma vitrine, um poste...) porque não tocá-lo? Com a mão direita, é claro. 

Poderia ficar horas falando de todos eles, pois são muitos. São desagradáveis, criam obstáculos óbvios na minha vida em diversas ocasiões, mas consigo levar numa boa. Às vezes até me divirto. Mas essas são as manias visíveis. E as “invisíveis”? Também tenho, e essas são as piores. São as que mexem com os nossos pensamentos diretamente. Pensamentos ruins, negativos e pessimistas. Não que os outros não mexam, pois temos a impressão que algo de ruim vai acontecer se não seguirmos os rituais, mas os que chamo de invisíveis estão presentes quase o tempo todo, independente de rituais.

Esses transtornos ninguém vê, não são engraçados, até porque não são, e me fazem sofrer.



De um bom tempo pra cá, tenho pensado muito em morte. Não na minha, mas nas pessoas que amo. Lembrando que meu pai tem 81 anos, minha mãe 76, além da Patrícia, minha irmã que é excepcional.

Qualquer espirro se transforma numa pneumonia, e qualquer dor de barriga vira uma doença grave. 
Me considero um cara esclarecido, inteligente, e sei que são coisas da minha cabeça, mas esses pensamentos são mais fortes. Fico cego.

Uma vez me falaram que a solução era eu pensar em outra coisa. Simples, não é?

Infelizmente, não. A mesma força que me trava, literalmente, ao tentar tomar uma iniciativa com a perna esquerda, por exemplo, me impede de pensar em coisas mais agradáveis. E vou levando a vida dessa forma.

Até que nos aparece uma tal de COVID 19.

Além da preocupação óbvia que todos têm, o que pode provocar uma pandemia desta natureza na vida de uma pessoa que tem TOCs de todos os tipos, visíveis e invisíveis?



Pra começar, acho que essa doença está me fazendo refletir. O tempo e o medo nos fazem refletir mais. É inevitável. E cheguei a conclusão que sou um cara insensível e egoísta.
Fiquei pensando em quantas epidemias já ouvi falar, crianças morrendo de fome, principalmente na África, guerras, furacões... E aí? No máximo, lamentei. É claro que fiquei triste, mas quando não nos atinge realmente, fica tudo por isso mesmo. Garanto que não passei dois dias pensando no mesmo assunto. Continuei vendo meu futebol, tomando minha cerveja, e apenas lamentando, isso quando via na tv a tragédia alheia.

Engraçado, dessa vez reagi de forma diferente quando soube da até então nova epidemia. Foi diferente desde quando soube do primeiro caso, lá em Wuhan. Pensei: “Hummmm, vem merda aí”. E passei a acompanhar o problema como nunca tinha feito antes. Preocupado. Não que eu tivesse mudado minha maneira de agir, mas tive a sensação que alguma coisa diferente estava acontecendo.

Acompanhei caso por caso, e fazia e as estatísticas "internações x mortes", até então aliviado pela baixa taxa de mortalidade. Sentiram a falta de sensibilidade?


Ainda não estava paranoico, neurótico, mas estava atento. Até que o pior aconteceu e o maldito vírus apareceu por aqui. Alarmes fictícios e sirenes virtuais já faziam parte da minha rotina. Meus pensamentos negativos entraram em êxtase. Minha mente imaginou coisas que me dariam o Oscar, tamanha a criatividade.

Neste mesmo período, início de março mais ou menos, eu já estava meio desestabilizado por um pequeno problema de saúde que minha mãe estava passando. Uma diarreia que não cessava, com fortes dores no estômago. Ou seja, eu já estava com a minha neurose a todo vapor. Não associei a nada ligado ao COVID 19, mas nem precisei disso pra surtar.
Enfim, graças a Deus ela ficou bem, mas me lembro de quando a levei ao médico. Dia 13 de março, sexta feira.

Chamamos o Uber e fomos para a Casa de Portugal, um hospital num bairro próximo de onde moro.
Assim que chegamos no carro, álcool em gel. É claro. Até aí, tudo bem.

Aliás, antes de terminar a história, tenho que falar sobre o álcool em gel. Assim que as notícias começaram a surgir, e que soube da primeira farmácia com falta de estoque aqui no Brasil, corri e comprei quase dois litros pela internet. Muitos me chamaram de exagerado, mas nem quis saber. Como dizem por aí, melhor exagerar antes, do que chorar depois.


Voltando à ida da minha mãe ao médico, quanto mais o simpático motorista falava, mais meu coração acelerava. De repente paramos num sinal de trânsito, ele se vira para trás e dá uma sonora gargalhada. Arregalei os olhos, minha pressão deve ter subido feito o dólar, e imediatamente passei o álcool nas mãos. Minha mãe me olhou espantada, mas aproveitei pra passar nela também.

“Meu filho, acabamos de passar o álcool nas mãos”
“Mãe, acho que não foi o suficiente. Confie em mim”

Ela aceitou a desculpa, mas como conhece o meu jeito, já sabia que se tratava de uma de minhas teorias da conspiração. 
Neste momento, eu já estava com a janela aberta, e com quase todo o meu tronco do lado de fora do carro. Imaginem a cena.
Enquanto isso o papo de minha mãe com o motorista fluía normalmente. Até que ela naturalmente coloca as mãos no assento do carro. Como assim??? Tirei o álcool do bolso como se fosse uma arma e, com gestos, pedi para que ela esticasse as mãos.

“Hããããã?! Não tem cinco minutos que fiz isso. Você tá louco?”.

Sem falar nada, e constrangido por causa do motorista, apenas apontei para o assento. Ela entendeu o recado, e também com gestos disse que não. Mas minha neurose não respeita a hierarquia. Mais álcool em gel.




E foi assim até o destino final. Numa viagem de 25 minutos, no máximo, lavamos as mãos três vezes, fora o risco de ser atropelado por um ônibus, mesmo estando dentro do carro.

Como disse anteriormente, o consultório do médico fica dentro da Casa de Portugal, um hospital. Preciso falar alguma coisa? A sensação era que todas as pessoas ao meu redor estavam contaminadas. Eu disse TODAS. E eu e minha mãe só estávamos salvos por causa das três doses de álcool em gel, é claro. Olhava para todos como se estivéssemos cercados por todos os lados.

Mas eu já estava lá, não tinha mais jeito. A vontade era de não respirar até voltar pra casa, mas meu recorde em apneia não passa de 30 segundos. Não daria tempo.

Haviam algumas pessoas no consultório aguardando atendimento, e tive o cuidado de ir para o final da sala. Não queria contato nem com minha sombra.

Eu estava bastante tenso, porém minha mãe não estava nem aí. Conversava com as pessoas como se elas não estivessem contaminadas. Eu não respondia nem o "boa tarde" das pessoas. Parecia uma estátua, morrendo de medo de respirar. Só tinha olhos para as mãos da minha mãe. Eu estava hipnotizado. 
Em determinado momento ela se distrai e coloca uma das mãos numa das cadeiras do consultório, e logo após vai em direção ao rosto. Como eu estava de sentinela, dei um salto feito um ninja, dei um tapa em sua mão e evitei o contágio.

E foi nessa paranoia, até que um cara de máscara aparece. Um paciente.

 “Máscara? Não pode ser! Ele veio atrás de nós, tenho certeza! Ele vai tossir e vamos todos morrer!"

Até aquele momento, tínhamos pouquíssimos casos confirmados no Brasil, e um deles estava na minha frente. Certeza.

Eu não tinha nenhum indício disso, mas como me convencer do contrário? Minha mente já havia criado uma história de terror. Comecei a ouvir pessoas tossindo de todos os lados, e a passar álcool em gel a cada vez que algum paciente que estava na sala se movimentava. Movimentava não, respirava. Estávamos cercados por zumbis contaminados!

Até que finalmente ela foi atendida. Isso depois de passarmos mais álcool em gel, desta vez do hospital. Até porque tinha que ter reservas para qualquer ataque inimigo na volta. E nem preciso dizer como foi essa volta, né?

Essa foi minha primeira experiência com a realidade do novo coronavírus. A partir desse dia, tive a certeza que minha vida mudaria completamente.

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