quinta-feira, 9 de abril de 2020

O primeiro obstáculo.

Surpreendentemente, acordei bem no dia seguinte.

Pensamento tá ok.
Coluna tá ok.
Neurose tá ok.
Vamos trabalhar, pra garantir o fim do mês.

Acordar bem não significa estar menos preocupado. Acordei com um astral legal, e me preparei para ir trabalhar sem os acessos de tosse que me perseguem quando estou muito ansioso. Mas os problemas ainda existiam, só não estava tão apavorado como no dia anterior.

A primeira coisa a resolver seria como eu faria para andar com um taxista, nosso amigo, sem querer dar muito papo. Como manter o isolamento social 100%?

Engraçado, tenho um problema enorme com constrangimentos. Desde muito novo. E não me perguntem o motivo, pois também não tenho a mínima ideia. Se foi algo de infância, não sei. Se aconteceu alguma coisa que me trouxe algum trauma, deletei da memória.

Qualquer tipo de constrangimento me faz muito mal, faz minha ansiedade disparar a níveis absurdos. E nem precisa ser algo diretamente comigo. Se eu presenciar alguma coisa que traga qualquer tipo de desconforto a alguém, até mesmo um desconhecido, já me afeta demais. 

Tirando a ansiedade, que é a causadora de 99% de meus problemas, talvez este problema seja o que mais me incomoda. Infinitamente mais do que os TOCs, para se ter uma ideia.

Muitas vezes acabo não me posicionando como deveria em algumas situações, por exemplo. Pode até não ser uma coisa séria, mas prefiro "deixar pra lá" a qualquer sinal de conflito.

Muitas vezes gosto de ter essa "inteligência emocional", outras não. Às vezes posso passar a falsa impressão de isenção, ou até mesmo de fuga. Não que isso nunca tenha acontecido, mas na maioria das vezes é o mal que a situação pode me trazer. Enfim, gostaria de ter o pavio um pouco mais curto em determinadas situações.

Também não sei dizer quantas vezes abri mão de alguma coisa que me favorecesse, apenas para não causar o desconforto a alguém. Faço qualquer coisa para não despertar minha ansiedade, nem que pague um preço por isso. 



Acabei de me lembrar de uma situação curiosa...

Certa vez, quando ainda fazia terapia (sim, já fiz terapia), recebi a seguinte missão:

"Entre numa loja de roupa qualquer, aceite a ajuda do primeiro vendedor que aparecer, e experimente dezenas de roupas, de todas as cores e tamanhos. Fique lá um bom tempo. Dê trabalho pra ele. Depois de experimentar todas elas, agradeça, diga ao vendedor que não gostou de nenhuma roupa e vá embora."

Como assim?

Alguém tem ideia do que isso significava pra mim, da dificuldade que seria cumprir essa missão? Seria muito mais fácil me mandar assaltar um banco.

E eu fiz. Não com tantos requintes de crueldade, mas fiz. E Deus sabe o quanto sofri. Saí da loja me sentindo o pior cara do planeta.

Enfim...

Dei tantas voltas só pra dizer que eu poderia passar por um certo constrangimento com o Chiquinho, o taxista. Nada que estivesse tirando o meu sono, mas era mais uma coisa a "resolver".

Mas antes de sair de casa, ainda precisava cumprir meus rituais diários.

Temos aqui em casa algumas imagens religiosas, principalmente de Jesus e Nossa Senhora de Fátima. Não saio, em hipótese alguma, sem pedir proteção a todas elas. Não consigo. Não basta pedir pedir proteção a uma imagem de cada, peço para todas elas, não importa quantas, mesmo que sejam repetidas. E nem sou tão religioso assim.

Detalhe, tenho que me fazer ouvir. Não basta pedir proteção de qualquer maneira, apenas para "cumprir tabela". Tenho que ter certeza que meus pedidos chegaram aos santos. Ou seja, isso pode render alguns preciosos minutos, depende muito do meu grau de concentração.

Saí de casa e desci pela escada, é claro. Apesar de morar no quarto andar, não ando de elevador desde que essa pandemia apareceu. E nem venham com esse papo de apertar o botão com a chave de casa. Prefiro evitar. E se algum vizinho resolvesse sair no mesmo momento que eu e entrasse no elevador? Prefiro o cansaço de subir e descer escadas.

Ao chegar na portaria, passando pelos fundos do prédio, reparei que o Chiquinho já estava me aguardando. E aconteceu o que eu temia. Ele abriu um sorriso e veio na minha direção com o braço esticado, querendo me cumprimentar. Todo simpático.

E se ele quisesse me abraçar?

Imediatamente, feito um lutador de caratê, joguei meus dois cotovelos pra frente e fui logo dizendo:

"Amigo, isolamento social, me perdoe."

E sorri pra quebrar o tal constrangimento. Ele sorriu também, meio sem graça, e entramos no carro.

A primeira coisa que fiz foi abrir todas as janelas com as pontas dos dedos. Só não tive coragem de sentar no banco de trás, que seria o ideal. E assim fomos. O problema é que ele estava falante como nunca, só pra me sacanear. E só depois fui entender o motivo. Ele estava com seu primeiro passageiro depois de alguns dias. O movimento nas ruas havia caído assustadoramente, e taxista vive disso. Confesso que me deu uma certa pena dele.

E quanto mais ele falava, mais eu passava álcool em gel nas mãos e mais eu tentava ficar com o rosto para o lado de fora do carro. Ele falava e eu respondia para o nada, para ninguém, pois em nenhum momento me dirigi a ele. Tudo pelo isolamento.

Foi uma situação meio patética, constrangedora, mas dessa vez não fiquei ansioso. Tinha um motivo maior, apesar do exagero. É assim que minha cabeça funciona.

E foi dessa forma que chegamos na gráfica. Foi assim que passei pelo meu primeiro obstáculo.

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