terça-feira, 21 de abril de 2020

Os primeiros dias.

Meus primeiros dias de confinamento foram péssimos. A falta de perspectiva, a incerteza do que vinha pela frente e as notícias que vinham dos outros países me deixaram muito mal.

Meus gatilhos disparavam a qualquer tosse, a qualquer dor de cabeça ou a qualquer vento que entrava pela janela. Meus ouvidos estavam ligados a qualquer som estranho que ecoasse pela casa. 
Eu já não sabia o que fazer. A paranoia que sempre fez parte da minha vida se acentuou. Não sei contar as vezes que coloquei a mão na testa, medindo minha temperatura, e nem quantos litros engoli de saliva, pra saber se eu estava com dor de garganta. Era como se eu procurasse pelos sintomas antes de ser encontrado por eles. Não só em mim, mas em minha mãe e minha irmã também.

No pique esconde, por exemplo, eu sempre preferi procurar do que me esconder. Não gostava da adrenalina de ser encontrado a qualquer momento. Hoje entendo que já era a ansiedade se fazendo presente. No futebol, fico infinitamente mais nervoso quando meu time está ganhando, pois me bate a expectativa do tempo não passar e o time adversário empatar o jogo. Mas quando isso não acontece, a sensação de prazer é indescritível.

Com essa minha procura pelos sintomas, além de meus remédios para pressão e meu antidepressivo, uma caixa de Benalet passou a ser figurinha fácil na cabeceira de minha cama. A qualquer desconforto na garganta, uma pastilha.

Mas apesar de toda essa preocupação, eu sabia que não poderia evitar o contato com o mundo exterior por muito tempo. Além de precisar ir na gráfica pelo menos mais um dia, para deixar tudo organizado para ficar um bom tempo sem precisar voltar lá, em algum momento precisaríamos fazer compras no supermercado, alguma coisa da farmácia, ou alguma outra possível necessidade básica. Enfim, a vida continuava e ainda não estávamos preparados para uma guerra nuclear. 

Mas como eu faria isso se a cada dia que passava, pior eu ficava de cabeça? Já tive depressão e um episódio de síndrome do pânico e não poderia deixar esse medo me dominar novamente. 

Logo nos primeiros dias, resolvi que não assistiria mais televisão, principalmente os telejornais. Na verdade, além da informação, eu buscava aquela notícia que todos esperavam, ou seja, a descoberta da cura. Mas aquilo estava aumentando minha ansiedade. Principalmente quando via as imagens. Aquilo era angustiante. As notícias ruins vinham em avalanche, e meus gatilhos disparavam feito metralhadora. Antes de qualquer medida protetiva, eu precisava cuidar da mente em primeiro lugar. E não era exatamente na fonte de notícias ruins que isso iria acontecer.

Sabem quando os filhotes de um pássaro estão no ninho, famintos, esperando o alimento chegar? Era exatamente assim que meus pensamentos estavam com relação aos noticiários. Se alimentando de notícias ruins.


Meus pensamentos, famintos.

Decidi não alimentar mais os filhotes. Não que as notícias ruins não devam ser mostradas, muito pelo contrário, mas precisamos de um contraponto. Eu precisava de alguma coisa que me desse esperança, que me fortalecesse. Até poderia saber das mortes que estavam acontecendo pelo mundo, mas não precisava ver as mães chorando a perda de seus filhos em cima do caixão. Acho desnecessário. 

Outra coisa que me incomodava, era até que ponto não estavam politizando certas informações? Tanto as positivas, quanto as negativas. Tanto de um lado, quanto de outro. Na dúvida, preferi me poupar.

E isso não se resumia apenas à televisão. Não tenho Facebook, mas imagino o quanto de desinformações não surgem de lá. Sem falar nos grupos de WhatsApp?

Outro dia recebi um vídeo num dos grupos que participo. Esse vídeo mostrava um rapaz agonizando, buscando o ar que não vinha. Ele estava morrendo de Covid 19. A cena era chocante, assustadora. Assim que percebi do que se tratava, desliguei imediatamente. Mas já era tarde, meus gatilhos dispararam, meu rosto esquentou e paralisei. Literalmente.

Durante algumas horas me imaginei naquela situação. Tentei dormir, mas não consegui de forma alguma.

Um pouco mais tarde fui descobrir que aquele vídeo não era real.  Aquela cena era de um filme chamado "Pandemia". Agora me respondam, pra que isso? O que faz um infeliz buscar uma cena de um filme como esse, e jogar na rede como se fosse real? Isso é desumano demais.

Ainda tive a felicidade de descobrir que era fake, mas enquanto não soube da verdade, imaginem quantos gatilhos foram disparados em minha mente.

Apesar de resolver evitar essas notícias, é claro que não poderia ficar alienado do mundo. Tinha que saber o que estava acontecendo, mas me permitia apenas procurar notícias em portais na internet. De vez em quando fuçava alguma ou outra coisa. Ali eu me informava, mas só me aprofundava nas notícias que realmente me interessavam, ou que eu estava preparado pra saber. Até lia as notícias ruins também, mas o impacto era infinitamente menor.

De certa forma, deu certo. Parei de receber balas perdidas e passei a encarar os tiros com colete a prova de balas. A ansiedade diminuiu bastante com isso.

E foi assim que me senti mais fortalecido para encarar novamente o mundo lá fora, depois de alguns dias confinado dentro de casa.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Meus transtornos obsessivos compulsivos.

Muita gente pergunta como os TOCs funcionam dentro da minha cabeça.

É uma força da natureza.

Acho que é a melhor definição que posso dar. Os pensamentos nos fazem travar, literalmente, e não conseguimos seguir adiante antes de realizarmos os rituais. 

No meu caso, sempre associo que algo de ruim vai acontecer. Então por que não evitar? O que significa pisar na quina de um meio fio, não sentar em determinado lugar, ou  evitar pisar numa faixa, por exemplo, se for para evitar um sofrimento?

Tenho um amigo que também tem esses problemas. Certo dia ele me contou um de seus rituais.

Todo dia, ao chegar do trabalho, ele estacionava seu carro na garagem do prédio, e ao lado de sua vaga ficava um carro amarelo. O carro estava sempre lá. Para ir ao elevador, bastava ele sair do seu carro e seguir em linha reta. Mas não. Alguma força fazia com que ele caminhasse em volta deste carro amarelo antes, que ficava mais afastado.

Não havia a menor condição desse ritual não ser realizado.
Isso durou meses, anos, sei lá. O que era apenas um “o que custa?”, passou a ser uma tortura, pois além dele não fazer o mais simples, tinha a frustração de não conseguir vencer algo aparentemente tão banal. Ele se sentia um derrotado.

Até o dia em que ele chegou em seu condomínio, como em qualquer dia normal, mas o carro amarelo não estava lá.

Uma pausa para o suspense.

E agora? Como realizar o ritual sem o personagem principal?

Meu amigo chegou a pensar que finalmente havia chegado o dia da libertação. Ele respirou fundo e saiu do carro em direção ao elevador. Só que seus passos começaram a ficar curtos, seus braços colaram no corpo e ele travou. Não conseguiu dar mais nenhum passo. Não sei o que ele pensou no momento, mas com certeza deve ter vindo aquela sensação de impotência.

A única solução seria voltar para o carro. E foi o que aconteceu. Derrotado pela sua própria mente, ele entrou no seu carro e aguardou o carro amarelo voltar. E só conseguiu entrar no elevador depois de cumprir sua “obrigação” diária, isso depois de quase duas horas de espera.

Vocês conseguem imaginar como esse cara sofreu? Difícil, mas eu consigo.

Acontece exatamente a mesma coisa comigo. É uma força muito maior que a gente. Não comandamos a nossa mente, e sim ao contrário.

Alguns TOCs são até engraçados, como o tradicional “não pisar na linha”, por exemplo, mas outros são torturantes e constrangedores. E o curioso é que esses pensamentos vêm e vão de uma hora para outra, pelo menos comigo. Posso não ter mais a necessidade de executar um ritual a qualquer momento, sem o menor trabalho psicológico para isso, mas por outro lado, algum novo pode surgir ao amanhecer.

Também tenho um caso curioso para contar.

Quando eu ainda estava na faculdade, minha rotina era chegar em casa por volta das 11 horas da noite, às vezes um pouco mais. Eu descia do ônibus e andava uns 10 metros antes de chegar na entrada do meu prédio. Era apenas a entrada, e não a portaria.

E toda a vez em que chegava nessa entrada, eu precisava dar uma joelhada com a perna direita numa pilastra. Coloquei uma foto para vocês entenderem melhor.


Minha companheira, a pilastra.

O curioso é que minha implicância era com aquela pilastra especificamente. Se eu chegasse no prédio pelo sentido contrário, tudo bem. Não precisava fazer absolutamente nada.

E de segunda à sexta, por volta das 23 horas, eu estava dando uma joelhada na entrada do prédio. E isso durou um bom tempo. Meses talvez. Não faço a mínima ideia do dia que começou, e nem como  começou, mas me lembro perfeitamente de seu último dia.

Depois de um dia normal de trabalho e de faculdade, desci do ônibus ao voltar pra casa, e fui em direção a pilastra. Dei minha tradicional joelhada, que eu fazia normalmente sem precisar parar de andar (muita prática), e me dirigi à portaria.

Cumprimentei o vigia e fui pegar o elevador, naturalmente. O detalhe é que tudo isso era feito no "automático", ou seja, não era premeditado. Tudo acontecia no seu tempo.

Só que neste dia, o vigia veio atrás de mim:

“Posso te fazer uma pergunta?”
“Claro João!”
“Por que você chuta a pilastra todos os dias quando chega?”

Acho que minha vergonha chegou ao nível máximo naquele momento.

“Eu? De que você está falando? Nunca reparei, João. Não é impressão sua?”

E subi. Fiquei muito sem graça. Muito. Não sabia que alguém notava naquilo, até pelo horário. No dia seguinte fiquei bastante pensativo, chateado. Não pelo flagrante, mas em precisar fazer aquilo todos os dias. Por que minha mente me obriga a fazer isso?

Mas a vida continua e à noite eu teria mais um dia de, a partir de então, de constrangimento.

Só que o milagre aconteceu. Ao descer do ônibus e entrar no prédio, não me veio pensamento nenhum, e não tive a menor necessidade de “cumprir a minha obrigação”. Passei direto, não travei e segui adiante.

“Boa noite, João!”

E subi, feliz da vida. Eu estava liberado.

Essa história tem uns 30 anos, mais ou menos, e o João ainda trabalha aqui. Mal sabe o bem que me fez.

Mas não pensem que meus TOCs são curados desta forma. Se fosse assim, seria tudo muito fácil. Não adianta alguém tentar fazer a mesma coisa que o João, achando essa é a solução. Não é assim que funciona. 

Talvez todo o contexto da história tenha mexido com a minha cabeça. O fato do João ter me acompanhado nessa minha obrigação durante todo o tempo, cheio de curiosidade, sem ter falado nada. Na forma que ele me abordou, cheio de cuidado, sei lá. Alguma coisa mexeu comigo. Só sei que deixei a pilastra em paz para todo o sempre. Pelo menos até hoje.

Mas existiam certos TOCs que me incomodavam demais, que sabia que as pessoas notavam, e mesmo assim eu não evitava.


Meu companheiro, o portão.

Esse portão verde é a entrada e saída de carros. E nesse portão maior havia uma porta só para pedestres. Quando um morador entrava ou saía do prédio, a pé, o porteiro só precisava abrir esta porta menor.

Muito bem. Todos os dias ao sair, eu abria esta porta e passava para o lado de fora, mas sem soltá-la. Tinha que pedir novamente proteção à Deus. O problema é que isso deveria ser feito ainda segurando a porta.

Na minha mente, segurar a porta ainda me deixava conectado a algum lugar seguro, como um cordão umbilical, mesmo que eu já estivesse do lado de fora. Só depois de "protegido" que eu estaria liberado para sair. E isso depois de todo o ritual que eu já havia feito em casa.

Estão lembrados que esses meus pedidos de proteção não poderiam ser feitos de qualquer maneira? Eu deveria ser “ouvido”. Isso poderia durar até um minuto, dois minutos, talvez. Uma eternidade.

Certo dia, já segurando a porta, surge um carro querendo sair do prédio. Neste caso, o portão maior precisaria ser todo aberto. Mas como, se eu estava ali, parado, segurando a porta de pedestre?

Ninguém entendeu absolutamente nada do que eu estava fazendo ali, nem o porteiro e nem o morador que estava dentro do carro, pacientemente aguardando um maluco soltar o portão.

Até que me aparece um outro carro, dessa vez para entrar no prédio. Aí deu a confusão. Um carro querendo sair, outro querendo entrar, e eu no meio, segurando o portão. As pessoas começaram a buzinar, até porque eu já estava afetando o trânsito na rua. 

O porteiro, coitado, sem saber o que fazer, e eu lá, tentando pedir proteção. Tentando, pois naquele momento a concentração já estava no espaço, e não tinha nenhum santo me ouvindo.

Depois de algum tempo e alguns xingamentos, finalmente consegui e fui embora como se nada tivesse acontecido.

Classifico esses meus TOCs de vísiveis, que são esses que citei agora, os invisíveis, que são os piores, pois afetam sua mente, realizando ou não os rituais, e os relâmpagos.

Talvez eu nunca tenho falado com ninguém sobre os "TOCs relâmpagos".

Esses são os gatilhos que aparecem em determinado momento, do nada, e eu preciso realizar algum ritual. Assim que é realizado, esse TOC desaparece definitivamente. Vou dar um exemplo.

Estou andando pelo shopping, tranquilamente, quando vejo um objeto numa vitrine. Esse objeto, por algum motivo, faz disparar um gatilho na minha mente. Mesmo que eu já tenha passado pela vitrine, preciso voltar e olhar novamente o objeto. Às vezes tocar na vitrine, sei lá. A necessidade surge na hora.

Posso passar novamente pelo mesmo objeto várias vezes, que não vai acontecer mais nada. Não sentirei mais nenhuma necessidade 
de voltar e olhar para o objeto novamente. Por isso digo que é relâmpago. Chega e vai embora imediatamente. Mas não deixa de ser um transtorno obsessivo compulsivo.

São muitos e muitos rituais, impossível me lembrar de todos. Alguns já foram embora, outros chegam para substituir. Uns são mais trabalhosos, outros mais tranquilos, e por aí vai.

Acreditem, não é frescura, como muita gente pensa. Somos escravos de nossa própria mente. Me considero até um privilegiado, pois tenho diversos rituais que muita gente nem sabe e nem percebe. Até os que convivem diariamente comigo.

Outros eu mesmo conto, me divertindo. Não tenho a menor vergonha, e talvez isso me ajude. Levo minha vida normalmente. Mas tem muita gente que sofre, que tem a sua vida afetada de verdade. Não só a sua, mas de seus familiares também.

Isso não é brincadeira, muito pelo contrário.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Voltando pra casa.

Antes de voltar pra casa, tive que passar por mais um susto.

O Chiquinho já estava do lado de fora, me aguardando, e eu ainda tinha que fazer alguns de meus rituais, fechar a gráfica e mais uma vez lavar as mãos.

Se qualquer situação, por mais simples que seja, pode me trazer ansiedade, imagine deixar alguém esperando. Tentei fazer tudo o mais rápido possível e saí com passos acelerados. Chegando praticamente no portão, eis que dou um chute com toda a força num ar condicionado quebrado, que estava no chão.

O chute foi tão forte que quase arrancou meu dedo fora. Lembrando que eu estava de chinelo de dedo.

E começou a sair muito sangue. Muito. Ou seja, a pressa não adiantou de nada. Abri o portão e falei com o Chiquinho que teria que lavar o meu pé, e voltei para gráfica. E fiquei alguns bons minutos aguardando aquela hemorragia de terceiro grau cessar. Foi quando o gatilho disparou.

"E o coronavírus? E se ele entrar pelo meu dedão e subir até o meu pulmão?"

Já disse que me considero um cara esclarecido. Sei que a contaminação pelo dedo do pé é impossível, mas estou tentando mostrar para vocês como as coisas funcionam. Nossa mente cria teorias das mais absurdas, quando o gatilho é disparado. Pode demorar segundos, ou até horas para cairmos na real. Depende do momento.

Não fiquei neurótico, mas confesso que evitei encostar o pé no chão até chegar em casa.

Minha volta com o Chiquinho foi exatamente igual à ida. Ele falante, e eu tenso, respondendo suas perguntas para o nada. Mas eu estava mais preocupado em como eu iria fazer para entrar em casa, pois eu havia ficado o dia inteiro exposto aos inimigos. Dos pés à cabeça, incluindo a batata da perna.

Chegando na portaria do prédio, preparei uma "Operação Resgate":

"Mãe, sou eu.
Câmbio."

"Graças a Deus, meu filho"

"Estou na portaria, siga toda as minhas instruções.
Câmbio."

Tá bom, meu filho"

Prepare um pano encharcado de água sanitária e coloque na porta. Deixe também dois sacos plásticos, abertos e coloque no chão. Coloque o álcool em gel em cima do tanque. Deixe a tampa da máquina de lavar aberta.
Câmbio."

"Tá bom, meu filho"

"Conte até 30, abra a porta e vá para o sofá. Não saia de lá até ouvir meu comando. Diga para a Patrícia não sair do quarto também.
Câmbio final"

"Só isso, meu filho?"



E assim foi feito. Subi pelas escadas, é claro, e assim que cheguei no apartamento estava tudo como eu havia pedido. Tadinha da minha mãe, ela é uma santa.


Antes de entrar, limpei meus chinelos no pano com água sanitária. Abri um dos sacos plásticos, joguei os chinelos dentro e dei dois nós, para garantir o lacre. Durante este processo, eu já estava limpando os pés descalços no pano.

Peguei o outro saco plástico e joguei meu celular, carteira, chaves e moedas. Logo após, tirei minha camisa e minha bermuda, e como um jogador de basquete, arremessei as duas peças dentro da maquina de lavar que estava aberta. Tudo isso sem entrar em casa. Reparem que fiquei de cueca no corredor do prédio.

Foi aí que começou a parte mais difícil.

Entrei, mas evitei ao máximo pisar com toda a base dos meus pés no chão. Pisava com os calcanhares. Entrei, fechei a porta, lavei minhas mãos no tanque, e fui em direção ao banheiro andando feito um pinguim. Complicado e cansativo. E se pudesse, não respiraria durante esse trajeto.

Chegando no banheiro, lavei todos os meus objetos pessoais com álcool e fui tomar um banho de 45 minutos, mais ou menos. 

Missão cumprida. Meu dia havia terminado com sucesso, agora era descansar e me programar para o próximo dia de trabalho.

sábado, 11 de abril de 2020

Encarando o inimigo.

O combinado com o Chiquinho seria que eu ficaria trabalhando até umas 16 ou 17 horas, mais ou menos, e depois ele iria lá me buscar.

No meu entender, o pior já havia passado. Lá na gráfica eu ficaria isolado, sem o menor contato com as pessoas. Depois que deixei de trabalhar definitivamente com meu pai, em 2009, o convenci de terceirizar todos os nossos serviços. Sendo assim, somos apenas eu e ele trabalhando. Não temos mais funcionários.

Tínhamos uma estrutura até razoável. Não deixávamos nada a desejar a qualquer gráfica de médio porte. Só que, com o avanço dos computadores, nossos clientes se reduziram a metade, ou até menos. Algumas máquinas se tornaram obsoletas, e outras só eram utilizadas esporadicamente. Muita gente conhecida quebrou.

Sendo assim, porque não vender essas máquinas e passar a trabalhar com mão de obra? Receberíamos todos os pedidos normalmente, mas a impressão seria feita em outro lugar. Apenas continuaríamos com as encadernações, que nada mais é do que dar acabamento nas mercadorias. Isso poderia ser feito perfeitamente por apenas um funcionário.

Meu pai teria menos trabalho, e eu poderia me desligar da firma sem a consciência pesada. 

E assim funciona até hoje, mesmo após a minha volta. Já havia aprendido muita coisa, tanto de impressão, quanto de encadernação, então eu poderia perfeitamente dar conta do recado.

Neste dia, especificamente, eu teria apenas que encadernar alguns pedidos, preparar a saída deles, emitir algumas notas fiscais, e ao final estaria liberado.

Cheguei, abri todas as janelas, coloquei minha playlist de rock no último volume e comecei a trabalhar. Estava bem tranquilo, apesar de tudo, envolvido com tanta coisa que tinha que fazer. E foi assim até que o primeiro raio de sol entrou pela minha janela. Deveriam ser umas duas horas da tarde, mais ou menos.

Quem nunca olhou para o raio de sol e não viu aquelas poeiras flutuando?



Sim, foi um prato cheio para minha mente neurótica. Não eram poeiras voando pelo ar. Era o próprio coronavírus entrando pela janela, e me cercando de tal forma que eu não poderia mais fugir. Eu havia caído numa emboscada. Fui atraído para meu próprio trabalho para ser infectado. 

É claro que eu sabia que aquilo era apenas poeira, mas confesso que a imagem foi uma tentação para a minha mente criativa. Como resolver aquilo? Simples, bastava ligar o ventilador e espalhar aquela poeirada toda. E assim foi feito.

Só que o gatilho na minha mente já havia sido acionado. Nada mais era exagero. Foi quando pensei em outra possibilidade:

"E esse ventilador em cima de mim? E se eu ficar gripado?"

Desliguei o ventilador pra não ficar gripado, é lógico. Preferi acompanhar o coronavírus com os próprios olhos, até porque a melhor forma de combater um inimigo é o mantendo por perto. Se algum coronavírus chegasse perto de mim, eu assoprava bem forte. Genial.

E assim voltei a pensar no trabalho.

De repente, quando já estava bem envolvido no que estava fazendo, reparei que havia sido picado por um pernilongo bem na batata da perna. Como eu iria apenas ficar dentro da gráfica, sem contato algum com os clientes, fui trabalhar de bermuda, camiseta e chinelo de dedo. Por pura comodidade, comecei a coçar a perna com o pé. Uma vez, duas vezes, três vezes...

Foi quando me deu um estalo. E se o chão estivesse contaminado? Acabei de passar o vírus na minha perna toda. Estou infectado. Vou morrer por causa de um descuido meu, por preguiça. Não tive o cuidado de pensar nisso, e agora? Me levantei imediatamente, saquei o álcool em gel do bolso, e praticamente tomei um banho. Parecia que eu estava passando protetor solar no corpo. 

Mais uma vez salvo, mas os pensamentos ruins estavam aparecendo com mais frequência. Já estava na hora de ir pra casa.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

O primeiro obstáculo.

Surpreendentemente, acordei bem no dia seguinte.

Pensamento tá ok.
Coluna tá ok.
Neurose tá ok.
Vamos trabalhar, pra garantir o fim do mês.

Acordar bem não significa estar menos preocupado. Acordei com um astral legal, e me preparei para ir trabalhar sem os acessos de tosse que me perseguem quando estou muito ansioso. Mas os problemas ainda existiam, só não estava tão apavorado como no dia anterior.

A primeira coisa a resolver seria como eu faria para andar com um taxista, nosso amigo, sem querer dar muito papo. Como manter o isolamento social 100%?

Engraçado, tenho um problema enorme com constrangimentos. Desde muito novo. E não me perguntem o motivo, pois também não tenho a mínima ideia. Se foi algo de infância, não sei. Se aconteceu alguma coisa que me trouxe algum trauma, deletei da memória.

Qualquer tipo de constrangimento me faz muito mal, faz minha ansiedade disparar a níveis absurdos. E nem precisa ser algo diretamente comigo. Se eu presenciar alguma coisa que traga qualquer tipo de desconforto a alguém, até mesmo um desconhecido, já me afeta demais. 

Tirando a ansiedade, que é a causadora de 99% de meus problemas, talvez este problema seja o que mais me incomoda. Infinitamente mais do que os TOCs, para se ter uma ideia.

Muitas vezes acabo não me posicionando como deveria em algumas situações, por exemplo. Pode até não ser uma coisa séria, mas prefiro "deixar pra lá" a qualquer sinal de conflito.

Muitas vezes gosto de ter essa "inteligência emocional", outras não. Às vezes posso passar a falsa impressão de isenção, ou até mesmo de fuga. Não que isso nunca tenha acontecido, mas na maioria das vezes é o mal que a situação pode me trazer. Enfim, gostaria de ter o pavio um pouco mais curto em determinadas situações.

Também não sei dizer quantas vezes abri mão de alguma coisa que me favorecesse, apenas para não causar o desconforto a alguém. Faço qualquer coisa para não despertar minha ansiedade, nem que pague um preço por isso. 



Acabei de me lembrar de uma situação curiosa...

Certa vez, quando ainda fazia terapia (sim, já fiz terapia), recebi a seguinte missão:

"Entre numa loja de roupa qualquer, aceite a ajuda do primeiro vendedor que aparecer, e experimente dezenas de roupas, de todas as cores e tamanhos. Fique lá um bom tempo. Dê trabalho pra ele. Depois de experimentar todas elas, agradeça, diga ao vendedor que não gostou de nenhuma roupa e vá embora."

Como assim?

Alguém tem ideia do que isso significava pra mim, da dificuldade que seria cumprir essa missão? Seria muito mais fácil me mandar assaltar um banco.

E eu fiz. Não com tantos requintes de crueldade, mas fiz. E Deus sabe o quanto sofri. Saí da loja me sentindo o pior cara do planeta.

Enfim...

Dei tantas voltas só pra dizer que eu poderia passar por um certo constrangimento com o Chiquinho, o taxista. Nada que estivesse tirando o meu sono, mas era mais uma coisa a "resolver".

Mas antes de sair de casa, ainda precisava cumprir meus rituais diários.

Temos aqui em casa algumas imagens religiosas, principalmente de Jesus e Nossa Senhora de Fátima. Não saio, em hipótese alguma, sem pedir proteção a todas elas. Não consigo. Não basta pedir pedir proteção a uma imagem de cada, peço para todas elas, não importa quantas, mesmo que sejam repetidas. E nem sou tão religioso assim.

Detalhe, tenho que me fazer ouvir. Não basta pedir proteção de qualquer maneira, apenas para "cumprir tabela". Tenho que ter certeza que meus pedidos chegaram aos santos. Ou seja, isso pode render alguns preciosos minutos, depende muito do meu grau de concentração.

Saí de casa e desci pela escada, é claro. Apesar de morar no quarto andar, não ando de elevador desde que essa pandemia apareceu. E nem venham com esse papo de apertar o botão com a chave de casa. Prefiro evitar. E se algum vizinho resolvesse sair no mesmo momento que eu e entrasse no elevador? Prefiro o cansaço de subir e descer escadas.

Ao chegar na portaria, passando pelos fundos do prédio, reparei que o Chiquinho já estava me aguardando. E aconteceu o que eu temia. Ele abriu um sorriso e veio na minha direção com o braço esticado, querendo me cumprimentar. Todo simpático.

E se ele quisesse me abraçar?

Imediatamente, feito um lutador de caratê, joguei meus dois cotovelos pra frente e fui logo dizendo:

"Amigo, isolamento social, me perdoe."

E sorri pra quebrar o tal constrangimento. Ele sorriu também, meio sem graça, e entramos no carro.

A primeira coisa que fiz foi abrir todas as janelas com as pontas dos dedos. Só não tive coragem de sentar no banco de trás, que seria o ideal. E assim fomos. O problema é que ele estava falante como nunca, só pra me sacanear. E só depois fui entender o motivo. Ele estava com seu primeiro passageiro depois de alguns dias. O movimento nas ruas havia caído assustadoramente, e taxista vive disso. Confesso que me deu uma certa pena dele.

E quanto mais ele falava, mais eu passava álcool em gel nas mãos e mais eu tentava ficar com o rosto para o lado de fora do carro. Ele falava e eu respondia para o nada, para ninguém, pois em nenhum momento me dirigi a ele. Tudo pelo isolamento.

Foi uma situação meio patética, constrangedora, mas dessa vez não fiquei ansioso. Tinha um motivo maior, apesar do exagero. É assim que minha cabeça funciona.

E foi dessa forma que chegamos na gráfica. Foi assim que passei pelo meu primeiro obstáculo.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

O início da quarentena.


É claro que essas minhas neuroses não se resumem a uma ou a outra saída de casa. Elas me acompanham no dia a dia, seja na rua, no trabalho ou no clube, por exemplo. E até mesmo sem sair. Essas coisas não escolhem dia e nem lugar.

Acompanhando os noticiários, entendi que minha quarentena deveria começar o quanto antes. Até pelo pânico que eu já estava sentindo. A princípio, minha maior preocupação era com meus pais, ambos no grupo de risco. Tinha o receio em ser o responsável em levar o vírus para eles.

Como já mencionei na postagem anterior, meu pai tem 81 anos, mas é super ativo. Trabalha até hoje. Aliás, voltamos a trabalhar juntos desde que voltei de minhas jornadas em São Paulo e Mato Grosso do Sul.

Não tenho medo de afirmar que a gráfica talvez seja a coisa mais importante na vida dele. Ele respira aquilo lá, ama cada centímetro daquele lugar. Seu coração e sua alma estão ali dentro. E gosto de ter essa percepção. Diante disso, como convencê-lo que seria necessário que ele ficasse em casa? Confinado. Sem previsão de sair. Como ele reagiria?

As notícias que já tomavam conta dos telejornais me ajudaram muito. Principalmente porque insistiam muito no perigo desta doença para os idosos. Além do mais, meu pai é um cara medroso quando o assunto é saúde. Aproveitei a situação e com muito papo e, principalmente, muito terrorismo, consegui com que ele não saísse mais. Mas sabia o quanto seria difícil, o quanto ele ficaria desesperado e angustiado com o fato de não trabalhar. Enfim, não tinha outra alternativa. Prisão domiciliar.

Chegamos num acordo e ele ficaria de casa mantendo os contatos com os clientes, cuidando dos pedidos, e eu iria para a gráfica resolver as pendências, liberar os produtos, pagamentos, enfim de todo o resto. Isso apenas quando necessário.

Eu não saía de casa desde a sexta passada, dia 13, quando levei minha mãe ao médico. Mas já estava na hora de encarar a realidade, e combinamos que eu iria trabalhar na quarta, dia 18. Sabia da importância de estar lá, pois tínhamos pedidos pendentes para entrega, e os clientes já estavam reclamando. 

Na terça feira, no dia anterior, fui dormir muito tenso. Aliás, tentar dormir. Virava de um lado para o outro, feito bife a milanesa, ansioso, pensando como seria a minha saga do dia seguinte. Eu estaria novamente exposto ao perigo, a pessoas contaminadas me perseguindo, querendo a minha alma. Depois de muitas caminhadas pela casa, muitos assaltos à geladeira, e muitas playlists no Spotify, adormeci. Deveriam ser quase cinco da manhã.



Havia marcado com um taxista conhecido que ele viria me buscar às nove. Acordei muito cedo, e assim que levantei tive um acesso de tosse incontrolável. Isso sempre acontece quando estou extremamente nervoso. Eu não estava legal, mas estava seguindo o combinado. Fui tomar um banho e deixei a água cair por vários minutos, tentando relaxar. Em vão. Não parava de pensar nesse pesadelo que estava acontecendo, no que seria de nossas vidas, e como eu faria para atravessar essa tormenta sem sequelas. 

Tanto pensei, tanto sofri, que o universo resolveu conspirar a meu favor. Só pode ser. Sem que eu movesse uma palha, o sabonete que estava quietinho na saboneteira caiu. Isso mesmo. Enquanto tentava relaxar com a água caindo na minha cabeça, o sabonete simplesmente caiu no chão, sozinho.

Santo sabonete!

Eu estava tão tenso, que ao tentar pegar o sabonete, minha coluna travou de uma tal forma que não consegui mais me mover. Juro. Tenho dores na coluna desde os doze anos, mas nunca havia sentido uma dor daquelas. Fiquei todo torto debaixo do chuveiro, com muitas dores e sem conseguir pedir ajuda. Mas estava aliviado. Aliviado é pouco. Eu estava feliz, afinal de contas não teria mais a menor condição de sair de casa. Acreditem, cheguei a pensar que pudesse ter sido um aviso de Deus. Não saia.

Tudo bem, eu já sabia que não havia a menor condição de ir trabalhar, mas a minha preocupação passou a ser outra. Como sair do banheiro daquele jeito?

Estava ali a quase uma hora, sem me mover, trancado e debaixo do chuveiro. Seria muita humilhação conseguir me livrar do coronavírus, mas morrer daquela forma. Torto, pelado e enrugado de tanta água.

Com muito custo, consegui me agachar e me arrastar para fora do box. Estiquei o braço, peguei uma toalha e abri a porta. Isso sem mexer o tronco. Caminhando com uma dificuldade gigantesca, consegui chegar na sala.



"Meu filho, o que aconteceu?"

"Colunavírus, mãe."


Cheguei até o sofá e demorei mais meia hora para me sentar. Aí sim consegui explicar o que havia acontecido. Fiquei ali por um bom tempo, mas não poderia ser para sempre. Tive que me virar sem sair do lugar até ficar com o rosto colado no encosto do sofá. Fui descendo até que cheguei ao chão, e assim fui me arrastando até o quarto.

Foi aí que liguei para o meu pai avisando que não daria pra sair de casa. Felizmente. 

Nem sei se ele acreditou, mas adiei o meu sofrimento para o dia seguinte. Ou não.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Um tal de Covid 19.


Tenho TOC, ou seja, Transtorno Obsessivo Compulsivo. Sim, tenho aquelas manias que todos acham graça e consideram coisas de maluco. Assim como eu também acho.

Entre algumas dessas manias, por exemplo, não entro em lugar nenhum que não seja com o pé direito. Isso vale para qualquer lugar que tenha alguma “divisão”. Do quarto pro corredor, do corredor pro banheiro, do banheiro de volta pro corredor. Nas ruas então, nem se fala. Ao atravessá-las, saio da calçada com o pé direito, e só subo a calçada do outro lado com o pé direito também. Se uma calçada for vermelha e depois passa a ser verde, preciso pisar na cor nova com o pé direito. Qualquer lugar que eu vá, que eu entre, preciso usar o pé direito primeiro. 

Se possível, evito as faixas de pedestres. Vocês não têm noção do que significa uma faixa na vida de uma pessoa que tem TOC. Perturbador.

Subo uma escada rolante com o pé direito, e só saio dela com o pé direito.
E pra entrar num carro? Como não dirijo, e estou sempre na “carona”, obrigatoriamente tenho que entrar pelo lado esquerdo, certo? Vocês podem imaginar como é entrar no carro pelo lado esquerdo usando o pé direito? Abro a porta e entro “de bunda”. Depois de sentado, fico com a perna esquerda suspensa até pisar com o pé direito. É um malabarismo, mas faço isso com maestria.

Sentar em bancos de praça? Jamais. Sair de casa sem fazer o sinal da Cruz diversas vezes? Nunca. Se eu cismar com alguma coisa na rua (um carro, uma vitrine, um poste...) porque não tocá-lo? Com a mão direita, é claro. 

Poderia ficar horas falando de todos eles, pois são muitos. São desagradáveis, criam obstáculos óbvios na minha vida em diversas ocasiões, mas consigo levar numa boa. Às vezes até me divirto. Mas essas são as manias visíveis. E as “invisíveis”? Também tenho, e essas são as piores. São as que mexem com os nossos pensamentos diretamente. Pensamentos ruins, negativos e pessimistas. Não que os outros não mexam, pois temos a impressão que algo de ruim vai acontecer se não seguirmos os rituais, mas os que chamo de invisíveis estão presentes quase o tempo todo, independente de rituais.

Esses transtornos ninguém vê, não são engraçados, até porque não são, e me fazem sofrer.



De um bom tempo pra cá, tenho pensado muito em morte. Não na minha, mas nas pessoas que amo. Lembrando que meu pai tem 81 anos, minha mãe 76, além da Patrícia, minha irmã que é excepcional.

Qualquer espirro se transforma numa pneumonia, e qualquer dor de barriga vira uma doença grave. 
Me considero um cara esclarecido, inteligente, e sei que são coisas da minha cabeça, mas esses pensamentos são mais fortes. Fico cego.

Uma vez me falaram que a solução era eu pensar em outra coisa. Simples, não é?

Infelizmente, não. A mesma força que me trava, literalmente, ao tentar tomar uma iniciativa com a perna esquerda, por exemplo, me impede de pensar em coisas mais agradáveis. E vou levando a vida dessa forma.

Até que nos aparece uma tal de COVID 19.

Além da preocupação óbvia que todos têm, o que pode provocar uma pandemia desta natureza na vida de uma pessoa que tem TOCs de todos os tipos, visíveis e invisíveis?



Pra começar, acho que essa doença está me fazendo refletir. O tempo e o medo nos fazem refletir mais. É inevitável. E cheguei a conclusão que sou um cara insensível e egoísta.
Fiquei pensando em quantas epidemias já ouvi falar, crianças morrendo de fome, principalmente na África, guerras, furacões... E aí? No máximo, lamentei. É claro que fiquei triste, mas quando não nos atinge realmente, fica tudo por isso mesmo. Garanto que não passei dois dias pensando no mesmo assunto. Continuei vendo meu futebol, tomando minha cerveja, e apenas lamentando, isso quando via na tv a tragédia alheia.

Engraçado, dessa vez reagi de forma diferente quando soube da até então nova epidemia. Foi diferente desde quando soube do primeiro caso, lá em Wuhan. Pensei: “Hummmm, vem merda aí”. E passei a acompanhar o problema como nunca tinha feito antes. Preocupado. Não que eu tivesse mudado minha maneira de agir, mas tive a sensação que alguma coisa diferente estava acontecendo.

Acompanhei caso por caso, e fazia e as estatísticas "internações x mortes", até então aliviado pela baixa taxa de mortalidade. Sentiram a falta de sensibilidade?


Ainda não estava paranoico, neurótico, mas estava atento. Até que o pior aconteceu e o maldito vírus apareceu por aqui. Alarmes fictícios e sirenes virtuais já faziam parte da minha rotina. Meus pensamentos negativos entraram em êxtase. Minha mente imaginou coisas que me dariam o Oscar, tamanha a criatividade.

Neste mesmo período, início de março mais ou menos, eu já estava meio desestabilizado por um pequeno problema de saúde que minha mãe estava passando. Uma diarreia que não cessava, com fortes dores no estômago. Ou seja, eu já estava com a minha neurose a todo vapor. Não associei a nada ligado ao COVID 19, mas nem precisei disso pra surtar.
Enfim, graças a Deus ela ficou bem, mas me lembro de quando a levei ao médico. Dia 13 de março, sexta feira.

Chamamos o Uber e fomos para a Casa de Portugal, um hospital num bairro próximo de onde moro.
Assim que chegamos no carro, álcool em gel. É claro. Até aí, tudo bem.

Aliás, antes de terminar a história, tenho que falar sobre o álcool em gel. Assim que as notícias começaram a surgir, e que soube da primeira farmácia com falta de estoque aqui no Brasil, corri e comprei quase dois litros pela internet. Muitos me chamaram de exagerado, mas nem quis saber. Como dizem por aí, melhor exagerar antes, do que chorar depois.


Voltando à ida da minha mãe ao médico, quanto mais o simpático motorista falava, mais meu coração acelerava. De repente paramos num sinal de trânsito, ele se vira para trás e dá uma sonora gargalhada. Arregalei os olhos, minha pressão deve ter subido feito o dólar, e imediatamente passei o álcool nas mãos. Minha mãe me olhou espantada, mas aproveitei pra passar nela também.

“Meu filho, acabamos de passar o álcool nas mãos”
“Mãe, acho que não foi o suficiente. Confie em mim”

Ela aceitou a desculpa, mas como conhece o meu jeito, já sabia que se tratava de uma de minhas teorias da conspiração. 
Neste momento, eu já estava com a janela aberta, e com quase todo o meu tronco do lado de fora do carro. Imaginem a cena.
Enquanto isso o papo de minha mãe com o motorista fluía normalmente. Até que ela naturalmente coloca as mãos no assento do carro. Como assim??? Tirei o álcool do bolso como se fosse uma arma e, com gestos, pedi para que ela esticasse as mãos.

“Hããããã?! Não tem cinco minutos que fiz isso. Você tá louco?”.

Sem falar nada, e constrangido por causa do motorista, apenas apontei para o assento. Ela entendeu o recado, e também com gestos disse que não. Mas minha neurose não respeita a hierarquia. Mais álcool em gel.




E foi assim até o destino final. Numa viagem de 25 minutos, no máximo, lavamos as mãos três vezes, fora o risco de ser atropelado por um ônibus, mesmo estando dentro do carro.

Como disse anteriormente, o consultório do médico fica dentro da Casa de Portugal, um hospital. Preciso falar alguma coisa? A sensação era que todas as pessoas ao meu redor estavam contaminadas. Eu disse TODAS. E eu e minha mãe só estávamos salvos por causa das três doses de álcool em gel, é claro. Olhava para todos como se estivéssemos cercados por todos os lados.

Mas eu já estava lá, não tinha mais jeito. A vontade era de não respirar até voltar pra casa, mas meu recorde em apneia não passa de 30 segundos. Não daria tempo.

Haviam algumas pessoas no consultório aguardando atendimento, e tive o cuidado de ir para o final da sala. Não queria contato nem com minha sombra.

Eu estava bastante tenso, porém minha mãe não estava nem aí. Conversava com as pessoas como se elas não estivessem contaminadas. Eu não respondia nem o "boa tarde" das pessoas. Parecia uma estátua, morrendo de medo de respirar. Só tinha olhos para as mãos da minha mãe. Eu estava hipnotizado. 
Em determinado momento ela se distrai e coloca uma das mãos numa das cadeiras do consultório, e logo após vai em direção ao rosto. Como eu estava de sentinela, dei um salto feito um ninja, dei um tapa em sua mão e evitei o contágio.

E foi nessa paranoia, até que um cara de máscara aparece. Um paciente.

 “Máscara? Não pode ser! Ele veio atrás de nós, tenho certeza! Ele vai tossir e vamos todos morrer!"

Até aquele momento, tínhamos pouquíssimos casos confirmados no Brasil, e um deles estava na minha frente. Certeza.

Eu não tinha nenhum indício disso, mas como me convencer do contrário? Minha mente já havia criado uma história de terror. Comecei a ouvir pessoas tossindo de todos os lados, e a passar álcool em gel a cada vez que algum paciente que estava na sala se movimentava. Movimentava não, respirava. Estávamos cercados por zumbis contaminados!

Até que finalmente ela foi atendida. Isso depois de passarmos mais álcool em gel, desta vez do hospital. Até porque tinha que ter reservas para qualquer ataque inimigo na volta. E nem preciso dizer como foi essa volta, né?

Essa foi minha primeira experiência com a realidade do novo coronavírus. A partir desse dia, tive a certeza que minha vida mudaria completamente.